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Diálogo nacional de Moçambique "não pode ser uma discussão elitizada"

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Nesta terça-feira, o chefe de Estado moçambicano Filipe Nyusi promove um diálogo entre os quatro candidatos às presidenciais de 9 de Outubro, no sentido de apaziguar as tensões que têm marcado estas últimas semanas, com a severa repressão dos protestos promovidos por um dos candidatos da oposição, Venâncio Mondlane, com um balanço de 67 mortos, segundo a sociedade civil.

Este encontro acontece numa altura em que o país ainda aguarda a proclamação dos resultados eleitorais pelo Conselho Constitucional que nesta segunda-feira, numa comunicação inédita, disse estar a "trabalhar afincadamente" para alcançar a "verdade eleitoral" sobre o escrutínio do qual , segundo a CNE, o candidato da Frelimo no poder, Daniel Chapo, saiu vencedor com cerca de 70% dos votos, o que a oposição contesta.

Neste mesmo comunicado em que estima poder divulgar os resultados finais por volta do 23 de Dezembro, o Conselho Constitucional refere ainda que os juízes conselheiros "têm sido alvo de ameaças, inclusive ameaças de morte, enviadas por mensagens privadas ou publicadas nas redes sociais".

Uma situação considerada preocupante por Arcénio Cuco, professor em Ciências políticas da Universidade Rovuma, em Nampula, com quem evocamos também as conversações a serem conduzidas sob a égide de Filipe Nyusi.

RFI: O Conselho Constitucional garante que está a fazer o possível para poder analisar todo o processo de forma justa e isto num contexto em que diz receber ameaças de morte. O que tem a dizer quanto a isto?

Arcénio Cuco: Eu penso que é bastante preocupante. Para já, a demora por si só já coloca uma situação de interrogações para os principais candidatos do processo. Considerando o facto de que existe um certo descrédito em relação às autoridades fiscalizadoras dos processos eleitorais, então essa demora por si só, vai continuar a levantar uma série de dúvidas por parte dos actores principais deste processo, já que pode se pensar mais uma vez na ideia de que se está a buscar orquestrar alguma coisa que possa ter uma influência directa no processo eleitoral em si. A outra coisa que eu acho que é importante sublinhar é que há já um ponto fundamental que é colocado por um dos candidatos às eleições como ponto prévio de discussão que vai acontecer nesse diálogo, que é justamente a reposição da verdade eleitoral. Aí a gente se coloca uma questão: o que seria a reposição da verdade eleitoral? A verdade eleitoral só existirá se o candidato e o seu partido forem considerados vencedores do processo em si? Isso é que me faz ter uma série de dúvidas em relação a esse diálogo que o Presidente vai ter com esses candidatos. Porque se a primeira coisa é a reposição da verdade eleitoral, o Presidente da República não tem prerrogativas para repor a verdade eleitoral. Então, eu penso que é fundamental que o Conselho Constitucional apresente os resultados o mais rápido possível, para que se possa encontrar outros mecanismos de discussão do processo, caso continuemos a registar situações de violência. Porque eu penso que com a divulgação dos resultados pelo Conselho Nacional, isso já poderá abrir um espaço para todos os partidos que neste momento contestam esses resultados, possam ter pontos prévios para discussão com os principais actores. Mas neste momento, o Conselho Constitucional ainda não divulgou os resultados. Quais são os pontos que vão ser discutidos? Então, eu acho que isto demora e isso abre espaço sim, para que os juízes, os magistrados do Conselho Constitucional, possam sofrer qualquer tipo de pressão por qualquer um dos actores com interesse no processo em si.

RFI: Diz que, efectivamente, o Presidente da República, nesta situação, não terá as prerrogativas legais para discutir o processo eleitoral em si com os quatro candidatos presidenciais. Mas, enquanto se espera pelos resultados do Conselho Constitucional, haverá com certeza forma de, pelo menos através do diálogo, tentar apaziguar a situação, a seu ver?

Arcénio Cuco: Eu penso que este é o único caminho que eu vejo que seria possível. Como se vê, a figura que convoca essas manifestações granjeia a maior simpatia das pessoas que aderem sempre que ele se pronuncia em relação ao que passa. Então eu penso que esse diálogo seria, para mim, um espaço certo para discutir sobre como é que, enquanto não temos os resultados eleitorais proclamados, podemos sair da convulsão que se vem vivendo desde 9 de Outubro.

RFI: A eu ver que sinais poderiam, de forma muito simples, ser dados durante este diálogo? Acha que há algumas cartas que podem ser jogadas tanto pelo lado do poder como pelo lado dos partidos de oposição?

Arcénio Cuco: Penso que sim. É preciso que se encontre espaço de intersecção dentro dos diferentes interesses que os actores envolvidos têm. Porque quando falamos de diálogo, estamos a falar de busca de um consenso. Estamos a dizer que cada um dos actores precisa ceder um pouco dentro das suas pretensões, perante aquilo que os outros também apresentam na mesa do diálogo. Para mim, a coisa fundamental neste momento é que se baixe os ânimos, porque nós estamos a perceber que de todos os lados há uma tendência de polarização numa situação em que há uma imposição de agendas, como, por exemplo, do candidato do Podemos. Parece-me um pouco difícil, porque é preciso também considerarmos que este é o primeiro passo que está sendo criado, o que significa que pode não ser o último momento de diálogo entre esses diferentes actores.

RFI: Chegou a ser proposta a ideia de um governo de unidade nacional -um governo provisório- que teria por iniciativa organizar novas eleições. Acha que esta é uma proposta viável?

Arcénio Cuco: É um pouco difícil dizer se é ou não uma proposta viável. Porque eu penso que as experiências da África Austral, em particular no que diz respeito à criação de um governo de unidade nacional, parecem não terem surtido efeito positivo, com a excepção do primeiro governo de Mandela, que foi bastante agregador. Vimos a experiência do Zimbabué em que percebemos que uma das partes que esteve envolvida no processo, apesar de ter feito parte do governo, era uma figura política no processo em si. Então, aí teremos de questionar de que forma esse governo de unidade nacional iria ser constituída. Aí também voltaríamos àquela questão que eu coloquei no início, de que, se não temos neste momento resultados do Conselho Constitucional, como é que nós podemos pensar num governo de unidade nacional? Como vimos nas eleições autárquicas no ano passado, o Conselho Constitucional reverteu determinados resultados. Então, quem sabe se neste processo também poderemos vir a ter situações em que se repitam eleições em determinadas províncias, ou até vários distritos. Eu acho que temos que neste momento dar o crédito necessário ao Conselho Constitucional, apesar de todos nós entendermos que os órgãos da administração eleitoral de Moçambique não têm esse crédito que se espera. Só para ter um exemplo muito simples, eu não sou muito defensor deste governo de unidade nacional, porque eu sempre tenho dito que se trata de governos de absorção de interesses de diferentes actores, que até pode não representar os anseios da maior parte dos moçambicanos. O exemplo, claro é aquela carta que o Venâncio Mondlane manda para o Presidente da República. Veja quem são as figuras que estão na lista que ele convida para participar no evento. Numa situação em que teve grande simpatia em quase todo o país, as pessoas que ele convida para fazerem parte do processo são de Maputo! Então que tipo de governo de unidade nacional poderíamos ter?

RFI: Na semana passada decorreu uma conferência na qual participou na Universidade Rovuma, em que disse que Moçambique precisa de um 'restart' e, sobretudo, disse que uma conferência nacional para fazer esse 'restart' de Moçambique teria que envolver líderes, jovens, pessoas das várias camadas da sociedade moçambicana, para, de facto, haver uma solução que seja representativa dos interesses do país.

Arcénio Cuco: Exacto. A propósito, eu escrevi para o jornal 'O País' sobre isto, um artigo inspirado na ideia do Fórum Económico Mundial do 'Great Reset'. Então eu pensei que para Moçambique ter uma nova forma, um novo caminho, seria necessário a gente repensar o país. Isso passaria necessariamente por se discutir o próprio sistema político moçambicano, razão pela qual eu colocava a ideia de que é preciso que se inicialize, que se faça um 'restart' ao país, porque neste momento, as formas como estão sendo discutidos os problemas de Moçambique não têm sido agregadoras. É preciso olhar que temos uma juventude de 2000 para cá, que não se revê com os principais actores políticos que o país tem, inclusive os chamados actores com uma certa história do país, que não se revê com a história de luta, de libertação nacional, não se revê com a Guerra dos 16 Anos. Se for a ver, há uma série de iniciativas que estão sendo levadas a cabo em Moçambique, mas eu não consigo ver os jovens que estão na rua a ser representados. São iniciativas que não incluem essa camada social que neste momento está a reivindicar por boas condições de vida em Moçambique. E nós sabemos muito bem que o principal móbil dessas manifestações não tem muita relação directa com o processo eleitoral em si, mas o estado de precariedade de vida dos jovens, a falta de emprego, a pobreza extrema, a fome. E perante isto, não se encontraram políticas públicas sérias por parte dos governantes de Moçambique para que pudessem resolver essa situação. Venâncio Mondlane foi apenas um catalisador da exteriorização das frustrações que muitos jovens moçambicanos têm. Então, se nós queremos pensar uma forma séria de discutir que país nós queremos, seria necessário que todos os segmentos sociais fossem convocados para se discutir quais são as principais direcções para as quais Moçambique deve ser colocado. Não pode ser uma discussão elitizada, como parece que se tende a fazer.

RFI: Num espaço de mais de um mês de manifestações reprimidas na violência em Moçambique, uma ONG, a Human Rights Watch, emitiu um comunicado dizendo que durante estas violências, pelo menos 10 crianças foram mortas e várias outras foram detidas, sem que tenha havido sequer uma informação dada às suas respectivas famílias.

Arcénio Cuco: Eu penso que toda a situação que põe em causa os Direitos Humanos, principalmente das crianças, deve ser condenada. Daí que eu tenho chamado a atenção quando falo do envolvimento de todos os segmentos sociais. O que nós estamos a perceber é que essas manifestações deixaram clara a fragmentação social em que nós nos encontramos. Parece-me que não há nenhum segmento social em Moçambique que luta por uma causa comum. A sociedade civil é um exemplo disso. Vai perceber que cada um vai aparecendo a discutir, apresentar comunicados ou posições até um certo ponto opostas das outras organizações da sociedade civil. Vai ver os tais políticos moçambicanos, que deveriam ser a parte da agregação de todas as camadas sociais, que se limitam a produzir comunicados. Mas falta uma acção conducente a uma luta para uma causa comum, que é a solução dos problemas que Moçambique neste momento está a viver. Então eu penso que é uma situação bastante condenável e a existir um evento nacional para discutir Moçambique, tem que haver uma unanimidade por parte destes segmentos sociais, no sentido de se dizer qual deve ser a agenda para todos os moçambicanos, porque do jeito como as coisas estão a acontecer, penso que não abonam em nada. Parece que cada um vai puxando a brasa para si. Então eu penso que essa luta sobre os Direitos Humanos tem que ser uma coisa que tem que ser abraçada por todos. Durante esse período, as críticas têm sido feitas para as autoridades de segurança. Há uma queixa apresentada agora no Ministério Público por causa da actuação da Polícia de Moçambique. Há uma queixa contra o Ministro do Interior, assim como o comandante geral. Eu acho que são iniciativas que até um certo ponto, mesmo que não surtam o efeito necessário, dizem respeito à condenação dos indivíduos. Mas há também uma responsabilização civil ao Estado que pode ser obrigado a ressarcir a essas famílias todas que perderam os seus entes queridos. Mas também pode ser uma grande chamada às autoridades de segurança no sentido de que, das próximas vezes, tenham muita atenção sobre a possibilidade de se judicializar todos os actos por eles praticados.

RFI: Falou dessa queixa junto do Ministério Público relativamente à actuação das autoridades. Há também o Centro de Integridade Pública, que acusa o próprio Ministério Público de ser selectivo relativamente à forma como instaura processos, referindo-se nomeadamente ao caso de Venâncio Mondlane, no que tange aos prejuízos resultantes das manifestações.

Arcénio Cuco: Eu penso que é natural. Há um certo descrédito das autoridades de justiça em Moçambique pela forma selectiva com que têm vindo a actuar. Isso certamente levaria qualquer um a levantar um questionamento sobre essa forma de actuação. Nós sabemos muito bem que não é a primeira vez que isto acontece, principalmente quando falamos de processos eleitorais. Tivemos uma série de casos nas eleições autárquicas passadas. São situações que, de alguma forma, acabam levando ao questionamento da actuação da Justiça em Moçambique. Estamos em situações em que mesmo pessoas que não tenham feito Direito em Moçambique estão em condições de perceber que alguns processos, são processos inquinados. Mas também precisa entender que Moçambique ainda não se desvencilhou do seu passado de Partido-Estado. Ainda não conseguimos nos desvencilhar disso. É a História que vai ditar mudanças. Penso que o primeiro sinal disso foi justamente nas eleições autárquicas passadas, em que os partidos políticos foram capazes de judicializar todos os processos que perceberam que não estavam sendo levados a sério pelos órgãos eleitorais. Essas manifestações que estão a acontecer neste momento também poderão ditar mudanças significativas no que diz respeito à actuação das autoridades públicas em Moçambique, porque ficou evidente que os moçambicanos cresceram do ponto de vista da consciência política e hoje são capazes de discutir todos os processos sem medo, como estamos a ver agora nessas manifestações.

RFI: Mencionou há pouco a herança do Partido-Estado, diria talvez também a herança dos partidos militarizados. A luta armada não está ainda muito longe. Julga que este método para fazer política ainda está muito presente em Moçambique e que isto poderá também explicar a opção pela violência?

Arcénio Cuco: Eu penso que sim. Somos neste momento uma sociedade violenta. Eu escrevi sobre isso há um a dois anos atrás, com um texto com o título 'A violência como mito fundador de Moçambique'. E se formos a ver, nós não conhecemos nenhuma outra experiência na História de Moçambique que não seja a violência. Parece que em todos os processos, eles acabam caindo na violência. Há dois elementos fundamentais que têm vindo a discutir uma chamada de "tudo económico", outro "de tudo militar", no sentido de que existe uma tendência, no nosso contexto, de a política significar o acesso a uma série de benefícios com muito pouco esforço. E isto quando não é garantido de forma a regulamentar, há quem recorra ao "tudo militar", o que significa pegar nas armas ou usar o discurso de violência para garantir que os seus interesses sejam abrangidos. Então, nessas circunstâncias, vai perceber que até hoje, o nosso pão de cada dia em Moçambique, tem sido a violência, mesmo depois de chamados Acordos Definitivos. Depois gerou-se o terrorismo em Cabo Delgado. Então, o que é que se pode esperar de um povo que não conheça outra coisa senão a violência armada? Eu penso que isso tem uma contribuição directa na forma como as pessoas que saem à rua se comportam justamente por causa dessa História. Certo que este ano temos uma coisa diferente. Estávamos habituados a ouvir o discurso belicista da Renamo. Agora é que percebemos que, afinal de contas, seria possível fazer-se a violência apenas com palavras. Mas o resultado continua sendo o mesmo, a violência total, a morte de cidadãos inocentes e a negociação do processo, como tem sido característico desde 1994. Negociamos em 94, negociamos em 99, negociamos em 2014 e agora, mais uma vez, estamos aí para a negociação.

RFI: Estas negociações acontecem numa altura em que SADC acaba de realizar uma cimeira na semana passada, durante a qual lamentou as mortes ocorridas durante estas manifestações, mas não condenou de forma cabal a repressão policial. Julga que este elemento também pode contribuir, de certa forma, para fragilizar esse processo de diálogo?

Arcénio Cuco: Eu não sei se teria uma relação directa com o diálogo em si, mas a experiência tem vindo a mostrar que os organismos regionais têm produzido poucos resultados para os países membros, particularmente quando hà crises, e isso é válido para a CEDEAO e por aí em diante. Veja quando aconteceu os golpes de Estado na África Ocidental, como é que procedeu? Buscou resolver este problema? Essa experiência também pode ser trazida para o caso da SADC. Você se lembra que tivemos problemas no Zimbábue com Robert Mugabe quando perdeu as eleições gerais? Tivemos a situação de Madagascar quando Ravalomanana foi deposto do poder. Eu não sei se conseguiu gerir de forma adequada esses processos. Então eu penso que mais do que uma solução da SADC, o próprio país tem que encontrar soluções domésticas para o processo. Como podemos ver, em nenhum momento se coloca uma possibilidade de uma negociação através deste organismo. Penso quea SADC teria muito pouco a contribuir para este processo justamente por causa dessas experiências que a gente vem assistindo.

RFI: Nampula foi um dos epicentros dessas manifestações que vêm ocorrendo desde há um mês a esta parte. Como é que todo este processo foi vivenciado nesta cidade?

Arcénio Cuco: Tivemos situações difíceis no primeiro dia que abrangeu quase toda a província, mas depois disso tivemos situações localizadas a nível da cidade de Nampula. As manifestações aconteciam apenas nos bairros periféricos. Houve momentos em que se colocou barricadas por algumas vias que foram imediatamente rechaçadas pelas autoridades de segurança. Tem havido, nesses últimos três dias daquilo que Venâncio Mondlane chamou de quarta fase das manifestações, uma participação nas marchas da cidade, uma aderência a esse convívio, mas sem violência. Houve um bom comportamento quer por parte das autoridades policiais, quer por parte dos manifestantes. Não se está a assistir a situações alarmantes como aquelas que vimos no primeiro dia das manifestações. Ao nível dos distritos, tem havido relatos de que há uma perseguição a algumas entidades ligadas ao partido no poder, onde há queima de casas, há queima dos símbolos do partido. Nalgum momento acabamos de assistir a situações em que as pessoas vão perdendo a vida. Tenho relatos que me dizem que em comunidades que não vou aqui mencionar, foram perseguidos membros e queimadas as suas casas. Então, a situação é bastante lamentável e uma solução imediata para se parar com essa situação deve ser encontrada. Quiçá esse diálogo traga algum resultado significativo para que os moçambicanos possam viver com uma certa tranquilidade.

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Este encontro acontece numa altura em que o país ainda aguarda a proclamação dos resultados eleitorais pelo Conselho Constitucional que nesta segunda-feira, numa comunicação inédita, disse estar a "trabalhar afincadamente" para alcançar a "verdade eleitoral" sobre o escrutínio do qual , segundo a CNE, o candidato da Frelimo no poder, Daniel Chapo, saiu vencedor com cerca de 70% dos votos, o que a oposição contesta.

Neste mesmo comunicado em que estima poder divulgar os resultados finais por volta do 23 de Dezembro, o Conselho Constitucional refere ainda que os juízes conselheiros "têm sido alvo de ameaças, inclusive ameaças de morte, enviadas por mensagens privadas ou publicadas nas redes sociais".

Uma situação considerada preocupante por Arcénio Cuco, professor em Ciências políticas da Universidade Rovuma, em Nampula, com quem evocamos também as conversações a serem conduzidas sob a égide de Filipe Nyusi.

RFI: O Conselho Constitucional garante que está a fazer o possível para poder analisar todo o processo de forma justa e isto num contexto em que diz receber ameaças de morte. O que tem a dizer quanto a isto?

Arcénio Cuco: Eu penso que é bastante preocupante. Para já, a demora por si só já coloca uma situação de interrogações para os principais candidatos do processo. Considerando o facto de que existe um certo descrédito em relação às autoridades fiscalizadoras dos processos eleitorais, então essa demora por si só, vai continuar a levantar uma série de dúvidas por parte dos actores principais deste processo, já que pode se pensar mais uma vez na ideia de que se está a buscar orquestrar alguma coisa que possa ter uma influência directa no processo eleitoral em si. A outra coisa que eu acho que é importante sublinhar é que há já um ponto fundamental que é colocado por um dos candidatos às eleições como ponto prévio de discussão que vai acontecer nesse diálogo, que é justamente a reposição da verdade eleitoral. Aí a gente se coloca uma questão: o que seria a reposição da verdade eleitoral? A verdade eleitoral só existirá se o candidato e o seu partido forem considerados vencedores do processo em si? Isso é que me faz ter uma série de dúvidas em relação a esse diálogo que o Presidente vai ter com esses candidatos. Porque se a primeira coisa é a reposição da verdade eleitoral, o Presidente da República não tem prerrogativas para repor a verdade eleitoral. Então, eu penso que é fundamental que o Conselho Constitucional apresente os resultados o mais rápido possível, para que se possa encontrar outros mecanismos de discussão do processo, caso continuemos a registar situações de violência. Porque eu penso que com a divulgação dos resultados pelo Conselho Nacional, isso já poderá abrir um espaço para todos os partidos que neste momento contestam esses resultados, possam ter pontos prévios para discussão com os principais actores. Mas neste momento, o Conselho Constitucional ainda não divulgou os resultados. Quais são os pontos que vão ser discutidos? Então, eu acho que isto demora e isso abre espaço sim, para que os juízes, os magistrados do Conselho Constitucional, possam sofrer qualquer tipo de pressão por qualquer um dos actores com interesse no processo em si.

RFI: Diz que, efectivamente, o Presidente da República, nesta situação, não terá as prerrogativas legais para discutir o processo eleitoral em si com os quatro candidatos presidenciais. Mas, enquanto se espera pelos resultados do Conselho Constitucional, haverá com certeza forma de, pelo menos através do diálogo, tentar apaziguar a situação, a seu ver?

Arcénio Cuco: Eu penso que este é o único caminho que eu vejo que seria possível. Como se vê, a figura que convoca essas manifestações granjeia a maior simpatia das pessoas que aderem sempre que ele se pronuncia em relação ao que passa. Então eu penso que esse diálogo seria, para mim, um espaço certo para discutir sobre como é que, enquanto não temos os resultados eleitorais proclamados, podemos sair da convulsão que se vem vivendo desde 9 de Outubro.

RFI: A eu ver que sinais poderiam, de forma muito simples, ser dados durante este diálogo? Acha que há algumas cartas que podem ser jogadas tanto pelo lado do poder como pelo lado dos partidos de oposição?

Arcénio Cuco: Penso que sim. É preciso que se encontre espaço de intersecção dentro dos diferentes interesses que os actores envolvidos têm. Porque quando falamos de diálogo, estamos a falar de busca de um consenso. Estamos a dizer que cada um dos actores precisa ceder um pouco dentro das suas pretensões, perante aquilo que os outros também apresentam na mesa do diálogo. Para mim, a coisa fundamental neste momento é que se baixe os ânimos, porque nós estamos a perceber que de todos os lados há uma tendência de polarização numa situação em que há uma imposição de agendas, como, por exemplo, do candidato do Podemos. Parece-me um pouco difícil, porque é preciso também considerarmos que este é o primeiro passo que está sendo criado, o que significa que pode não ser o último momento de diálogo entre esses diferentes actores.

RFI: Chegou a ser proposta a ideia de um governo de unidade nacional -um governo provisório- que teria por iniciativa organizar novas eleições. Acha que esta é uma proposta viável?

Arcénio Cuco: É um pouco difícil dizer se é ou não uma proposta viável. Porque eu penso que as experiências da África Austral, em particular no que diz respeito à criação de um governo de unidade nacional, parecem não terem surtido efeito positivo, com a excepção do primeiro governo de Mandela, que foi bastante agregador. Vimos a experiência do Zimbabué em que percebemos que uma das partes que esteve envolvida no processo, apesar de ter feito parte do governo, era uma figura política no processo em si. Então, aí teremos de questionar de que forma esse governo de unidade nacional iria ser constituída. Aí também voltaríamos àquela questão que eu coloquei no início, de que, se não temos neste momento resultados do Conselho Constitucional, como é que nós podemos pensar num governo de unidade nacional? Como vimos nas eleições autárquicas no ano passado, o Conselho Constitucional reverteu determinados resultados. Então, quem sabe se neste processo também poderemos vir a ter situações em que se repitam eleições em determinadas províncias, ou até vários distritos. Eu acho que temos que neste momento dar o crédito necessário ao Conselho Constitucional, apesar de todos nós entendermos que os órgãos da administração eleitoral de Moçambique não têm esse crédito que se espera. Só para ter um exemplo muito simples, eu não sou muito defensor deste governo de unidade nacional, porque eu sempre tenho dito que se trata de governos de absorção de interesses de diferentes actores, que até pode não representar os anseios da maior parte dos moçambicanos. O exemplo, claro é aquela carta que o Venâncio Mondlane manda para o Presidente da República. Veja quem são as figuras que estão na lista que ele convida para participar no evento. Numa situação em que teve grande simpatia em quase todo o país, as pessoas que ele convida para fazerem parte do processo são de Maputo! Então que tipo de governo de unidade nacional poderíamos ter?

RFI: Na semana passada decorreu uma conferência na qual participou na Universidade Rovuma, em que disse que Moçambique precisa de um 'restart' e, sobretudo, disse que uma conferência nacional para fazer esse 'restart' de Moçambique teria que envolver líderes, jovens, pessoas das várias camadas da sociedade moçambicana, para, de facto, haver uma solução que seja representativa dos interesses do país.

Arcénio Cuco: Exacto. A propósito, eu escrevi para o jornal 'O País' sobre isto, um artigo inspirado na ideia do Fórum Económico Mundial do 'Great Reset'. Então eu pensei que para Moçambique ter uma nova forma, um novo caminho, seria necessário a gente repensar o país. Isso passaria necessariamente por se discutir o próprio sistema político moçambicano, razão pela qual eu colocava a ideia de que é preciso que se inicialize, que se faça um 'restart' ao país, porque neste momento, as formas como estão sendo discutidos os problemas de Moçambique não têm sido agregadoras. É preciso olhar que temos uma juventude de 2000 para cá, que não se revê com os principais actores políticos que o país tem, inclusive os chamados actores com uma certa história do país, que não se revê com a história de luta, de libertação nacional, não se revê com a Guerra dos 16 Anos. Se for a ver, há uma série de iniciativas que estão sendo levadas a cabo em Moçambique, mas eu não consigo ver os jovens que estão na rua a ser representados. São iniciativas que não incluem essa camada social que neste momento está a reivindicar por boas condições de vida em Moçambique. E nós sabemos muito bem que o principal móbil dessas manifestações não tem muita relação directa com o processo eleitoral em si, mas o estado de precariedade de vida dos jovens, a falta de emprego, a pobreza extrema, a fome. E perante isto, não se encontraram políticas públicas sérias por parte dos governantes de Moçambique para que pudessem resolver essa situação. Venâncio Mondlane foi apenas um catalisador da exteriorização das frustrações que muitos jovens moçambicanos têm. Então, se nós queremos pensar uma forma séria de discutir que país nós queremos, seria necessário que todos os segmentos sociais fossem convocados para se discutir quais são as principais direcções para as quais Moçambique deve ser colocado. Não pode ser uma discussão elitizada, como parece que se tende a fazer.

RFI: Num espaço de mais de um mês de manifestações reprimidas na violência em Moçambique, uma ONG, a Human Rights Watch, emitiu um comunicado dizendo que durante estas violências, pelo menos 10 crianças foram mortas e várias outras foram detidas, sem que tenha havido sequer uma informação dada às suas respectivas famílias.

Arcénio Cuco: Eu penso que toda a situação que põe em causa os Direitos Humanos, principalmente das crianças, deve ser condenada. Daí que eu tenho chamado a atenção quando falo do envolvimento de todos os segmentos sociais. O que nós estamos a perceber é que essas manifestações deixaram clara a fragmentação social em que nós nos encontramos. Parece-me que não há nenhum segmento social em Moçambique que luta por uma causa comum. A sociedade civil é um exemplo disso. Vai perceber que cada um vai aparecendo a discutir, apresentar comunicados ou posições até um certo ponto opostas das outras organizações da sociedade civil. Vai ver os tais políticos moçambicanos, que deveriam ser a parte da agregação de todas as camadas sociais, que se limitam a produzir comunicados. Mas falta uma acção conducente a uma luta para uma causa comum, que é a solução dos problemas que Moçambique neste momento está a viver. Então eu penso que é uma situação bastante condenável e a existir um evento nacional para discutir Moçambique, tem que haver uma unanimidade por parte destes segmentos sociais, no sentido de se dizer qual deve ser a agenda para todos os moçambicanos, porque do jeito como as coisas estão a acontecer, penso que não abonam em nada. Parece que cada um vai puxando a brasa para si. Então eu penso que essa luta sobre os Direitos Humanos tem que ser uma coisa que tem que ser abraçada por todos. Durante esse período, as críticas têm sido feitas para as autoridades de segurança. Há uma queixa apresentada agora no Ministério Público por causa da actuação da Polícia de Moçambique. Há uma queixa contra o Ministro do Interior, assim como o comandante geral. Eu acho que são iniciativas que até um certo ponto, mesmo que não surtam o efeito necessário, dizem respeito à condenação dos indivíduos. Mas há também uma responsabilização civil ao Estado que pode ser obrigado a ressarcir a essas famílias todas que perderam os seus entes queridos. Mas também pode ser uma grande chamada às autoridades de segurança no sentido de que, das próximas vezes, tenham muita atenção sobre a possibilidade de se judicializar todos os actos por eles praticados.

RFI: Falou dessa queixa junto do Ministério Público relativamente à actuação das autoridades. Há também o Centro de Integridade Pública, que acusa o próprio Ministério Público de ser selectivo relativamente à forma como instaura processos, referindo-se nomeadamente ao caso de Venâncio Mondlane, no que tange aos prejuízos resultantes das manifestações.

Arcénio Cuco: Eu penso que é natural. Há um certo descrédito das autoridades de justiça em Moçambique pela forma selectiva com que têm vindo a actuar. Isso certamente levaria qualquer um a levantar um questionamento sobre essa forma de actuação. Nós sabemos muito bem que não é a primeira vez que isto acontece, principalmente quando falamos de processos eleitorais. Tivemos uma série de casos nas eleições autárquicas passadas. São situações que, de alguma forma, acabam levando ao questionamento da actuação da Justiça em Moçambique. Estamos em situações em que mesmo pessoas que não tenham feito Direito em Moçambique estão em condições de perceber que alguns processos, são processos inquinados. Mas também precisa entender que Moçambique ainda não se desvencilhou do seu passado de Partido-Estado. Ainda não conseguimos nos desvencilhar disso. É a História que vai ditar mudanças. Penso que o primeiro sinal disso foi justamente nas eleições autárquicas passadas, em que os partidos políticos foram capazes de judicializar todos os processos que perceberam que não estavam sendo levados a sério pelos órgãos eleitorais. Essas manifestações que estão a acontecer neste momento também poderão ditar mudanças significativas no que diz respeito à actuação das autoridades públicas em Moçambique, porque ficou evidente que os moçambicanos cresceram do ponto de vista da consciência política e hoje são capazes de discutir todos os processos sem medo, como estamos a ver agora nessas manifestações.

RFI: Mencionou há pouco a herança do Partido-Estado, diria talvez também a herança dos partidos militarizados. A luta armada não está ainda muito longe. Julga que este método para fazer política ainda está muito presente em Moçambique e que isto poderá também explicar a opção pela violência?

Arcénio Cuco: Eu penso que sim. Somos neste momento uma sociedade violenta. Eu escrevi sobre isso há um a dois anos atrás, com um texto com o título 'A violência como mito fundador de Moçambique'. E se formos a ver, nós não conhecemos nenhuma outra experiência na História de Moçambique que não seja a violência. Parece que em todos os processos, eles acabam caindo na violência. Há dois elementos fundamentais que têm vindo a discutir uma chamada de "tudo económico", outro "de tudo militar", no sentido de que existe uma tendência, no nosso contexto, de a política significar o acesso a uma série de benefícios com muito pouco esforço. E isto quando não é garantido de forma a regulamentar, há quem recorra ao "tudo militar", o que significa pegar nas armas ou usar o discurso de violência para garantir que os seus interesses sejam abrangidos. Então, nessas circunstâncias, vai perceber que até hoje, o nosso pão de cada dia em Moçambique, tem sido a violência, mesmo depois de chamados Acordos Definitivos. Depois gerou-se o terrorismo em Cabo Delgado. Então, o que é que se pode esperar de um povo que não conheça outra coisa senão a violência armada? Eu penso que isso tem uma contribuição directa na forma como as pessoas que saem à rua se comportam justamente por causa dessa História. Certo que este ano temos uma coisa diferente. Estávamos habituados a ouvir o discurso belicista da Renamo. Agora é que percebemos que, afinal de contas, seria possível fazer-se a violência apenas com palavras. Mas o resultado continua sendo o mesmo, a violência total, a morte de cidadãos inocentes e a negociação do processo, como tem sido característico desde 1994. Negociamos em 94, negociamos em 99, negociamos em 2014 e agora, mais uma vez, estamos aí para a negociação.

RFI: Estas negociações acontecem numa altura em que SADC acaba de realizar uma cimeira na semana passada, durante a qual lamentou as mortes ocorridas durante estas manifestações, mas não condenou de forma cabal a repressão policial. Julga que este elemento também pode contribuir, de certa forma, para fragilizar esse processo de diálogo?

Arcénio Cuco: Eu não sei se teria uma relação directa com o diálogo em si, mas a experiência tem vindo a mostrar que os organismos regionais têm produzido poucos resultados para os países membros, particularmente quando hà crises, e isso é válido para a CEDEAO e por aí em diante. Veja quando aconteceu os golpes de Estado na África Ocidental, como é que procedeu? Buscou resolver este problema? Essa experiência também pode ser trazida para o caso da SADC. Você se lembra que tivemos problemas no Zimbábue com Robert Mugabe quando perdeu as eleições gerais? Tivemos a situação de Madagascar quando Ravalomanana foi deposto do poder. Eu não sei se conseguiu gerir de forma adequada esses processos. Então eu penso que mais do que uma solução da SADC, o próprio país tem que encontrar soluções domésticas para o processo. Como podemos ver, em nenhum momento se coloca uma possibilidade de uma negociação através deste organismo. Penso quea SADC teria muito pouco a contribuir para este processo justamente por causa dessas experiências que a gente vem assistindo.

RFI: Nampula foi um dos epicentros dessas manifestações que vêm ocorrendo desde há um mês a esta parte. Como é que todo este processo foi vivenciado nesta cidade?

Arcénio Cuco: Tivemos situações difíceis no primeiro dia que abrangeu quase toda a província, mas depois disso tivemos situações localizadas a nível da cidade de Nampula. As manifestações aconteciam apenas nos bairros periféricos. Houve momentos em que se colocou barricadas por algumas vias que foram imediatamente rechaçadas pelas autoridades de segurança. Tem havido, nesses últimos três dias daquilo que Venâncio Mondlane chamou de quarta fase das manifestações, uma participação nas marchas da cidade, uma aderência a esse convívio, mas sem violência. Houve um bom comportamento quer por parte das autoridades policiais, quer por parte dos manifestantes. Não se está a assistir a situações alarmantes como aquelas que vimos no primeiro dia das manifestações. Ao nível dos distritos, tem havido relatos de que há uma perseguição a algumas entidades ligadas ao partido no poder, onde há queima de casas, há queima dos símbolos do partido. Nalgum momento acabamos de assistir a situações em que as pessoas vão perdendo a vida. Tenho relatos que me dizem que em comunidades que não vou aqui mencionar, foram perseguidos membros e queimadas as suas casas. Então, a situação é bastante lamentável e uma solução imediata para se parar com essa situação deve ser encontrada. Quiçá esse diálogo traga algum resultado significativo para que os moçambicanos possam viver com uma certa tranquilidade.

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